José Antonio da Silva
O Salão Paulista de Arte Naïf presta homenagem a José Antonio da Silva, um dos ícones da história da arte naïf paulista. Apresentamos a Via Sacra realizada pelo artista em 1967. Ela pertence ao acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Fotos de Iran Monteiro e Zé Antonio.
















O artista Silva
por Romildo Sant’Anna
A ciência é infalível, mas tem as suas falhas.
José Antônio da Silva (Folha de Rio Preto, 23.08.1969)
Epígrafe do livro Silva: Quadros e Livros – Um Artista Caipira
de Romildo Sant’Anna (Editora Unesp, 1993)
José Antônio da Silva nasceu num sítio de Sales Oliveira, SP, em 1909; morreu em São Paulo, em 1996. Pela vida, mordiam-lhe as dores do desapreço e incompreensão. Foi pintor, escritor e é considerado por muitos o mais importante naïf do Brasil. Seus feitos pessoais e como artista mostram vestígios fundos de nossas raízes socioculturais. Criado na roça, as ondas do êxodo rural o chamaram para a cidade e, em finais de 1930, chegou a São José do Rio Preto. Sem eira nem beira, foi alojado com a mulher e filhos nos fundos do Centro Espírita Allan Kardec. Realizava o serviço que aparecia, de pedreiro a guarda-noites de hotéis.
Desde criança sentiu inclinação para o desenho e rabiscava em superfícies improvisadas. Autodidata, corajoso, visionário e aventureiro, inventando os próprios meios, barganhava pinturas por mantimentos, remédios, bugigangas. Semi alfabetizado, e durante dez anos, escreveu o Romance da Minha Vida, editado em 1949 para a inauguração do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Publicou os versos de Sou Artista, Sou Poeta (1981) e três autobiografias romanceadas: Maria Clara (70, prefácio de Antônio Cândido), Alice (1971, adaptada em 1986 como a peça Rosa de Cabriúna, pelo Centro de Pesquisa Teatral do SESC, direção de Márcia Medina, sob a supervisão de Antunes Filho) e Fazenda da Boa Esperança (1987). Participou da I Bienal de São Paulo, em 1951.
Em 1966, o artista criou o Museu Municipal de Arte Contemporânea nos fundos da Biblioteca Municipal de Rio Preto. Era uma espécie de museu do inconsciente naïf. Ainda nesse ano, além de coletivas em Moscou e Paris, foi distinguido com “Sala Especial” na Bienal Internacional de Veneza. É citado em dicionários e enciclopédias, referido e estudado em livros de história da arte. Acerca do artista foram realizados filme de cinema, grandes reportagens em jornais e revistas, inúmeros programas de televisão e o CD-Rom José Antônio da Silva, produzido pela Associação dos Amigos da Pinacoteca e Prefeitura de São Paulo. Silva possui quadros em Galerias e Museus de várias partes do planeta. Na capital paulista, compõe o acervo do MASP, do Museu de Arte Moderna, Museu de Arte Contemporânea da USP, Pinacoteca do Estado e do Museu de Arte Sacra.
Após a aposentadoria, mudou-se para São Paulo onde já mantinha um modesto ateliê. O Museu de Arte Contemporânea foi fechado e as obras do acervo (pinturas, desenhos e esculturas), assim como objetos históricos ficaram abandonados, sujeitos ao calor e à umidade, às traças, ao fungo… ao esquecimento. Anos mais tarde, fez doação dessa fortuna cultural à cidade e, em 1980, inaugurou-se o MAP – Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ de São José do Rio Preto. Em 1998, com a interdição do prédio devido a enchentes, as telas do artista foram depositadas no subsolo do Teatro Municipal, onde permaneceram até março de 2001, quando o museu foi reinaugurado.
Em 2012, o MAP foi transferido para o prédio da antiga Biblioteca Municipal ‘Dr. Fernando Costa’, com o piso revestido dos mesmos tacos de madeira que, por muitos anos o artista varreu e encerou.
Silva é um Antônio; um José, tudo nome de gente simples, ordeira, apaixonada. Sua vida e arte desenham o emblema gritante do sem-terra, do sem-teto, do sem-nada. À moda dos artistas populares, e incorporando um ardente romantismo, fez de sua existência, arte; de sua arte, vida. Era o personagem de si, um repórter da vida perdida em desejos. Seu tino para a expressão crua da arte fez ecoar pelos quatro ventos as aspirações, sonhos e sentimentos que identificam a população pobre e esquecida do país em meados do século 20. Seu primitivismo de cores e formas desnorteantes – para os padrões refinados das “belas artes” – revigora arquétipos e símbolos elementares da existência coletiva. Fez-se encarnação da voz das populações humildes, pronunciada no dialeto abafado pelos valores das elites integradas. Seja em pintura, literatura ou no que lhe indicasse a prodigiosa imaginação, Silva se expressava – como poetizaria Manuel Bandeira em Evocação do Recife – “na língua errada do povo, na língua certa do povo, pois ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Silva, ingênuo em muitos aspectos, era um sujeito sabido, despachado, instintivo, descomedido, espontâneo e previdente.
O artista produziu telas esperançosas, idílicas, religiosas, deprimentes, líricas, prenhes de doidices e impulsos quiméricos. Tinha pressa de levar seus sonhos à apreciação pública. Pensava que o sonhador é aquele que acredita em algo que não precisa acontecer para existir. Assim, buscava a eficácia da mentira. Parecia intuir que, recuadas no tempo, história e lenda se confundem. Agia como se o certo e o errado não existissem, pois não se sentia como uma pessoa, mas um personagem. Exagerado, parecia compreender que as coisas têm visibilidade quando exibidas em proporções superlativas. De Silva ficou-me a impressão de que, entre o sinal verde e o vermelho, avançava sempre no amarelo. Esse “temperamento de artista” (ora premeditado, a reforçar-lhe o epíteto de “artista aloucado”), lhe custou reprovações implacáveis e tão provincianas quanto o provincianismo da cidade que o viu nascer para as artes.
Julgava-se raro. Acerca disto, disse-me um punhado de vezes, remexendo os cabelos como quem vasculha os miolos: “Tô sempre em voga porque só confio em mim… O diabo tem muitas caras!”. Assim sendo, era um senhor das grandes suposições, de calculadas, mas ingênuas licenças poéticas e que, rapidamente, aprendeu a tirar proveito de suas origens rurais carregadas dum idealizado apelo de ingenuidade e pureza. Morreu relativamente pobre, sem nunca ter andado de avião.
Romildo Sant’Anna, livre-docente, diretor-fundador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’. Escritor e professor de História da Arte, é autor do livro Silva: Quadros e Livros – Um Artista Caipira
(1996 – Editora Unesp: São Paulo) – Prêmio Casa de las Américas – Havana.


FILME DE ROMILDO SANT’ANNA SOBRE A VIA-SACRA DE JOSÉ ANTÔNIO DA SILVA, NA PARÓQUIA DE N. S. DO SAGRADO CORAÇÃO – SÃO JOSÉ DO RIO PRETO